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Pele que habita

Atravessava a rua como quem não quer nada, e de fato não quer. Como qualquer ser humano em seu dia a dia, toma-se a postura rotineira e automática. Nada se vê, nada se sente, apenas anda pelas ruas como se não houvesse nada de novo - e não há -.
Não existem sequer resquícios de amor pelas ruas. Amargas e infelizes, as pessoas andam apressadas para casa, para o trabalho, para algum compromisso tosco que, para começo de conversa, nem queriam ir. Perde-se o objetivo de, de fato, existir. Apenas passam-se horas, dias, meses e anos sem um ser humano entender o que está acontecendo. Sempre aquela sensação de o que andei fazendo esse ano todo? Onde estive? Com quem estive? Não há resposta concreta, aliás, há sim… mas tal resposta é tal ruim que não vale a pena proferi-la em voz alta.
Mas, nas noites frias (mesmo nas noites de verão, a solidão alcança-nos fria e sem escrúpulos) é possível relembrar a resposta.
Passei o tempo todo sozinho.



Amanheceu um novo dia, levanta da cama com um humor tão amargo quanto o café que toma, toma um banho e veste a melhor roupa para aquele momento, e sem ânimo algum sai de casa. Atravessa a rua, direção ao metrô, olha em volta como quem não tá afim de muita coisa, olha adiante e vê uma pessoa não tão qualquer, era alguém conhecido. Na verdade, a pessoa é tão comum e tão linda ao mesmo tempo que, de repente, era como se o momento congelasse ao prestar atenção nela. E numa fração de segundos, imagina até nos filhos que poderiam ter, e então a pessoa se perde na multidão e a ilusão se desfaz. Normal.
Respira fundo, entra no metrô e desce as escadas com uma certa urgência, a hora parecia castigar todos que ali estavam. Dá uma olhada nas outras pessoas e não enxerga nada além de chatice, tédio e rotina, todas arrumadas e prontas para aguentar um dia de merda qualquer que não surpreende mais ninguém. Indaga-se: o que nós meros mortais estamos fazendo nesse planeta? Supõe-se, então, que somos somente formigas realizando nosso trabalho nessa terra que prevalece a lei do homem e da violência. O vagão se aproxima e num ato instintivo como se sua vida dependesse disso, avança até chegar perto de onde a porta se abrirá, e quando isto acontece, se apressa em pegar um lugar qualquer para ao menos se segurar. Metrô não é uma boa opção para quem tem um equilíbrio parecido com de um babuíno bêbado. Parte para o trabalho que não é o que queria para sua vida, mas é preciso fazer dinheiro (apesar de ter escolhido uma profissão qualquer que desse dinheiro e não ganhar nem metade do que se era esperado) para sobreviver, né? Então, não se dá ao luxo de se perguntar se quer fazer algo diferente de sua vida. E assim se segue, com o mesmo entusiasmo volta para o apartamento minúsculo que nem gosta tanto, não é do jeito que sempre quis, mas se acostumou. Arranca o par de sapatos, a camisa e vai até a geladeira, pega e abre uma cerveja e vai para a varanda, então fica a olhar aquela paisagem que não mostra nada além do céu e suas estrelas quase apagadas pelas luzes da cidade, e o movimento aterrorizante e constante. Fuma seu cigarro, bebe sua cerveja e escuta um som da época que era mais jovem.
Não jovem de idade, e sim jovem de pensamentos. Um aventureiro que foi podado porque se deixou ser, falecido e esquecido.
Poderia mudar tudo aquilo, mas não o faz. Esqueceu tudo que planejou e acha que assim ao menos será estável para sempre. 
Retorna seu pensamento ao rosto que viu pela manhã. Aquele rosto conhecido, aquela expressão adoravelmente perdida no meio da multidão. Se lembra e dá um sorriso que aponta decepção, as coisas poderiam ter sido diferentes. Afastar alguém que ama por sentir instabilidade é o fim da picada do amor, é exatamente o que, mais tarde, vai virar arrependimento. Ah, se o arrependimento matasse
Mas não há o que fazer, em sua cabeça. Fim de papo, não tem mais jeito.
Do outro lado da cidade está aquele rosto que fora reconhecido sem ter noção disso, se divertindo com os amigos. Com a pele tatuada e o rosto cheio de joias, sorri para as pessoas com seu copo de cerveja na mão. Acordou na manhã daquele dia com um sorriso no rosto, com o humor tão doce quanto seu cappuccino. Tomou um banho moderado para economizar água, escolheu a roupa que se sentiu mais confortável e a vestiu. Saiu e tomou rumo, passou pelo metrô mas preferia andar a pé para tomar um ar fresco (nem tanto, por conta da poluição). Saíra para fazer um trabalho qualquer com sua câmera profissional de última geração, para render um bom dinheiro. E rendeu. Gostava de sua profissão, aliás, suas profissões. Sempre inventava de fazer algo novo e maluco, sem se importar se daria errado ou não.
Então voltou para seu apartamento, recém reformado, lindo. Bem do jeito que sempre quis, do jeito que desejara com outra pessoa ao seu lado e não aquela que estava ali naquele momento. Sempre fora um tipo de pessoa jovem que segue apenas seu coração, aliás, sua alma. Fazia seu corpo executar somente o que sua alma sentia necessidade.
Era livre.
Foi para sua linda varanda, fumou seu cigarro e bebeu sua cerveja. Olhou para o céu e depois para o horizonte, sorrindo com as luzes da cidade que tanto lhe atraía. Relembrou de um rosto que não via há muito tempo, tal rosto que recorda sua última expressão como violenta e brusca, enquanto seus lindos lábios proferiam palavras que até então não gosta de recordar. O fim da picada é deixar seu amor partir, mesmo querendo que este fique ali. Mas com muito pesar deixou, as brigas já eram constantes e a estabilidade era algo que não fazia parte de seus planos, apesar de querer juntar eles com os planos daquele que se foi, este parecia relutante porque de repente passou a detestar cada vez mais a instabilidade. A rotina era amiga de um e inimiga de outro. Ambas as pessoas eram diferentes nos ideais, mas a compatibilidade era algo de outra dimensão… tal qual foi ignorada, e por fim se perderam no meio do caminho ao esquecer que serem diferentes era algo que proporcionava um equilíbrio mágico.
Dá um sorriso indicando mágoa, engole o choro junto com a cerveja e fica pensando em como seria tão bonito e diferente…
Poderia ir lá e mudar tudo, até pensa em fazê-lo. Até concluiu: “este é o lado bom da minha instabilidade…”.
Imagina só se, por um instante, os corpos trocassem de lugar para então ambos saberem a visão um do outro.
Na pele habita a alma de cada ser e ninguém sequer tem ideia do que a outra pessoa passa. A pele que habita a alma é diferente de cada um, mas se esquece que a diferença entre duas peles gera o perfeito equilíbrio de sentimentos.

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